Gilberto Freyre
Um gosto que nasce no madrugador século XVI
“Inclinados a tal, sob que influências vindas de longe? A esse respeito é bom recorrer-se à fonte de informação do madrugador século XVI, suprida pela própria Igreja através de pesquisas realizadas então, como se estivessem concorrendo para saberes cientificamente sociais pelo santo Ofício em atividades investigadoras no Brasil. Suponho ter sido, no livro Casa-Grande & Senzala, o primeiro a utilizar os resultados de tais pesquisas, em obra acessível ao grande público. Constam essas informações da Primeira Visitação do Santo Ofício a Partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça. Surgem, nessas indagações secretas, homens casados casando outra vez com mulatas (talvez do tipo mulher tornada conhecida como “arde-lhe o rabo”, decerto por haver se extremado em furor anal), adultos europeus ou de procedência européia pecando contra a natureza, em coitos anais ou através de luxúrias de felação, com efebos, quer da terra, quer da Guiné, participantes, alguns deles, com tal volúpia desses amplexos, que de um deles se registra a exclamação “quero mais”.
A participação nesses coitos da gente da terra parece indicar, de ameríndios, presentes em contatos madrugadores com europeus, terem sido, eles próprios, dados à sodomia ou à pederastia, com o abuso de bundas já então praticado, quer por europeus em não-europeus, quer — é possível — em reciprocidades volutuosas eurotropicais: euro-ameríndias e euro-afronegras. Pode-se concluir de mulheres indígenas, desde esses dias, terem revelado preferências, para contatos sexuais com portugueses, por aqueles motivos priápicos já alegados pelo severo Varnhagen: os portugueses, em confronto com machos indígenas, teriam se revelado mais ardorosamente potentes. Sabe-se por alguma observações antropológicas confiáveis, de homens de culturas primitivas precisarem, em vários casos, para efeitos de procriação tribal, de festas excitantemente sexuais, que os levem a atos procriadores, é claro que acompanhados de gozos. Atos e gozos, entretanto, mais provocados que espontâneos, embora as investigações do Santo Ofício documentem ocorrência de receptividade de indígenas a práticas, já por indígenas conhecidas, em que o coito anal teria se verificado.
Das afronegras notáveis por suas bundas e dos ardores patriarcais
(…) Não há evidência alguma de mulheres indígenas terem se feito notar, como aconteceria com mulheres de origem afronegra, introduzidas na colônia, desde o século XVI, por nádegas notavelmente protuberantes ou por bundas salientemente grandes. E, por essas saliências, sexualmente provocantes do seu uso, e até do seu abuso, em coitos de intenções mais voluptuosas. Ao tamanho das nádegas, desenvolveu-se, é de supor, a tendência, quase folclórica, entre brasileiros, de associarem-se os chamados cus de pimenta ou rabos ardorosos, já presentes em referências em registros das investigações do Santo Ofício.
Entretanto, é preciso não resvalar-se na simplificação de atribuir-se a presença, entre mulheres brasileiras, de bundas grandes, com ou sem essas conexões, à presença de afronegras notáveis por tais protuberâncias de nádegas. Mas é preciso atentar-se no fato de mulheres tipicamente ibéricas, inclusive portuguesas, presentes na colonização do Brasil, terem quase rivalizado, por vezes, com afronegras, em tais protuberâncias de nádegas. Num livro notável, (…) The Soul of Sham (Londres, 1908), o mestre em sexologia, Havelock Ellis, lembra dos por Deniken classificados como do tipo antropológico iberóide serem em geral morenos de uma pigmentação de um encanto estético chamado por Gauthier, referindo-se especificamente às telas espanholas de Málaga, de um “dourado pálido” (…)
E as mulheres? De modo geral, superiores aos homens, afirma Ellis.O que viria sendo confirmado pela sua maior autenticidade como expressões de tipos nacionalmente ibéricos. E especificando seus característicos antropologicamente físicos à base dos sociais: quando jovens, tendentes a delgadas, embora com bustos e ancas — bundas, portanto — já desenvolvidos. Protuberâncias acentuadas com a idade madura. A idade, em mulher bonita, a associar-se a gordura. E à gordura, juntar-se, segundo Ellis, “maior amplitude e acentuação de ancas em relação com as demais partes do corpo”.
Para o ideal feminino predominante no Brasil patriarcal, de “gorda e bonita”, é de se supor ter concorrido influência árabe, contra a qual teriam se oposto, no século XIX, influências romanticamente européias. (…) Um ideal, o de sinhazinha adolescente, quase menina e, de tão delgada, quase sem bunda e de seios virginalmente discretíssimos, mãos e pés ostensivamente pequenos. Outro ideal, o de sinhadona de meia -idade, gorda, ostensivamente bem nutrida, dignamente bunduda, apta ao desempenho de mulher, mãe de sucessivos filhos e a cujo físico não faltavam bundas mais dignamente maternas que provocantemente sexuais. Pois para a satisfação de ardores sexuais o macho patriarcal brasileiro tinha, aa seu dispor — por vezes defrontando-se com ciúmes de esposas ciosas de seus direitos conjugais –, escravas, mucamas, morenidades em vários graus de mulheres. Isto, dentro da reciprocidade casa grande-senzala. Miscigenadas, como se a miscigenação se fizesse através de experimentos antropologicamente eugênicos e estéticos. Experimentos que permitissem que fossem com que graduadas saliências de bundas, evitando-se os exageros africanóides.
Do andar afrodisíaco das bundas ondulantes à anfíbia Roberta Close
E aqui é preciso que se volte à observação de Havelock Ellis, quanto a uma das superioridades da mulher ibérica sobre as ortodoxamente européias estar na assimilação, pela ibérica, de remota influência africana do andar, como se dançasse. É um movimento de bundas bastante amplas — especifique-se — para permitirem essa ondulação como que — sugira-se — afrodisíaca de andar.
A grande número de mulheres brasileiras, a miscigenação pode-se sugerir ter dado ritmos de andar e, portanto, de flexões de nádegas, susceptíveis de ser considerados afrodisíacos. Atente-se nesses ritmos, em cariocas miscigenadas, em confronto com as beldades argentinas que o observador tenha acabado de admirar. Os ritmos de andar da miscigenada brasileira chegam a ser musicais, na sua dependência de bundas moderadamente ondulantes. Para Havelock Ellis, o andar da mulher mais tipicamente ibérica, em contraste com a da ortodoxamente européia — em grande número de casos, acrescente-se a Ellis, como que calvinistamente proibida, em sua maneira de ser femininamente elegante, de ter bunda ostensiva — teria alguma coisa de graciosa qualidade de um corpo felino inteiramente vivo.
O homem médio brasileiro não pode deixar de ser sensível à imensidade de provocações que o rodeiam. Não tanto ao vivo, como por meio de anúncios de revistas ilustradas, que se vêm esmerando na utilização de reproduções coloridas de bundas nuas, como atrativos para uma diversidade de artigos à venda. Há,no Brasil de hoje, uma enorme comercialização da imagem da bunda de mulher em anúncios atraentes. Estéticos uns, alguns lúbricos. Também se vem fazendo esse uso na televisão. E, sonoramente, em músicas apologéticas da beleza da bunda de mulher. O sexo da mulher vem, através dessa comercialização da bunda em anúncios, quase perdendo, em publicidade apologética, para esse nada insignificante rival, no Brasil.
Ainda agora, a propósito da anfíbia Roberta (Close), vem se destacando dela, como qualidade feminina, ter “bunda grande”. À “bunda grande” se contrapõe, no Brasil, como negativo sexual, e até eugênico e estético, a “bunda murcha”, a “bunda seca”, a “bunda magra”. Pois o ideal árabe de mulher bonita, ser gorda, ainda não foi superado de todo, no Brasil, pelo ideal de mulher secamente elegante, desde a chamada flapper, da década de trinta: mulher delgada e como se fosse rapaz. Quase sem bunda!
Da teoria à prática ou de como as ditas polacas entram nesta história
Perdendo em anúncios e tendendo a bunda a um tão bom como tão bom em práticas de coito, não é raro, entre brasileiros atuais, a alternativa: o gozo anal tendendo a alternar, para não poucos homens, com o chamado papai-mamãe, que seria o encontro do pênis com a vulva.
Por algum tempo foi a bunda o chamariz, da parte de mulheres da vida, do tipo chamado indistintamente polaco, em ruas de ostensiva prostituição comercial, a homens ao alcance de suas vozes, que consideravam cansados de coitos conjugais monotonamente normais. Tais mulheres anunciavam deixarem-se enrabar ou a praticar o sexo oral.
Assinale-se que, ao começar a haver, em Mangues, tais ofertas, parece ter havido não pouca repulsa da parte de mulatas mais castiçamente brasileiras, a homens que lhes propuseram facilitar-lhes tais substitutos de coitos convencionais. Que fossem se acanalhar com polacas! O que não parece ter impedido de as alternativas virem sendo adotadas por brasileiras de cor, com as bundas avantajadas sendo cortejadas por homens inclinados a esse tipo porventura mais carnal de coito.
Da bunda como inspiração estética nas artes plásticas
Ouvi, em Sussex, do escultor Henry Moore, que os olhos do artista, para criarem esculturas, precisavam não só de ver, como, pelo olhar, apalpar o que viam com vontades de esculpir. O que evidentemente reforça a sensualidade das esculturas, quando de mulheres nuas, dando-lhes maior apelo sexual: o de uma intensidade que não chega a ser lúbrica para ser sexy. Impressionista, Moore? Para lá desse ismo. Mais expressionista que impressionista. Mas na verdade, também, além desse outro ismo.
Para o arquiteto finlandês Eliel Saarinem, em Search for Form, (N.Y., 1948), nenhum desses ismos pioneiramente destruidores de convenções das chamadas naturalistas deixou de representar impulsos de criatividade diferentes em artistas inovadores. Diferença, inclusive, de perspectivas do nu de mulher, como desafio, quer de forma, quer de cor. O que inevitavelmente veio a tocar em morenidades ecológicas, condicionadas por sóis e calores tropicais. E a produzir pintores especializados em dar destaque a bundas de mulheres morenas. Um deles, de modo notável, Emiliano di Cavalcanti.
Bundas, porque, mais do que faces ou partes superiores de corpos, elas permitem ao pintor dar ênfase estética a curvas femininas. É em nádegas que esses curvas esplendem, irradiando suas maiores provocações, além de estéticas, sensuais. Foi pioneiro em fixá-las o exotista ou tropicalista Gauguin. De onde outros ismos em criações pictóricas em torno de corpos de mulheres, isto é, de formas diferentes das olimpicamente, apolineamente, estaticamente clássicas. Inclusive o muito dionisíaco primitivismo, pretendendo juntar, à apresentação de bundas como partes aliciantemente belas de corpos de mulher, uma perspectiva como que — paradoxo — maliciosamente inocente.
As bundas de mulatas célebres de Di Cavalcanti não estão nesse caso. Nem elas nem as das pinturas criativamente inclassificáveis como istas de Cícero dias, de que emergem mulheres nuas ostentando mais bundas desacompanhadas de pêlos do que sexos com pentelhos ramalhudos. Aliás, a miscigenação brasileira tornou-se tão vasta, que as bundas de mulheres do Brasil constituem, talvez, a mais variada expressão antropológica de uma moderna variedade de formas e nádegas, com as protuberantes é possível que avantajando-se às menos ostensivas.
De como a bunda cintila na Literatura e vira anseio no Carnaval de Chico Buarque
Na literatura brasileira, que autor pode ser destacado como tendo dado especial relevo ao liciante assunto? Impõe-se recordar do lúcido modernista de 22, Oswald de Andrade, que, em página de novela com alguma coisa de autobiográfico, confessa: “e enrabei Dona Lalá”. Em versos, também modernistas, Manuel Bandeira refere-se a “genipapo na bunda”. E em Evocação do Recife dá a entender das lindas recifenses, que viu, com olhos de menino, nuinhas, a se banharem no então também lindo e limpo Capibaribe, que entre as partes de seus corpos mais causadoras do seu alumbramento estavam as bundas.
É curioso que, no seu excelente Ensaios de Antropologia Estrutural (Petrópolis, 1977), o professor Roberto da Matta, ao considerar o Carnaval brasileiro como “rito de passagem”, destaque ser a rainha do carnaval “sempre uma vedete de formas perfeitas”. E sua bunda? É parte ou não dessa perfeição? Se, como recorda de música de Chico Buarque, o típico brasileiro carnavalesco espera “o Carnaval chegar” para “pegar em pernas de moças”, como não destacar-se seu ensejo maior de apalpar bundas de mulher?
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O texto acima foi extraído da revista Playboy nº.113, de dezembro/1984, sob o título de “Uma paixão nacional”.
muy revelador
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