Júlia Dias Carneiro
Quinze meses se passaram entre a chegada do escritor austríaco Stefan Zweig ao Brasil, fugindo do nazismo na Europa, e seu suicídio em Petrópolis. Ao deixar a Inglaterra em junho de 1940, assustado com o avanço das tropas de Hitler na França, ele mandou um telegrama de Nova York ao seu editor no Brasil, Abrahão Koogan, avisando que estava se preparando para uma “viagem sul-americana” e ficaria um tempo no Rio para terminar “o livro brasileiro”.
O telegrama, datado de 23 de julho de 1940 e enviado pela Western Telegraph Company, é um dos documentos estampados no livro Stefan Zweig no país do futuro – a biografia de um livro, lançado em abril de 2009, no Rio de Janeiro, pelo jornalista e pesquisador Alberto Dines. Nas páginas seguintes ao telegrama, reproduções de inúmeras cartas na grafia de Zweig descrevem os acertos com o editor para sua chegada, e um recorte de jornal retrata a euforia na época diante da chegada do estrangeiro, que já era um escritor de renome: “Stefan Zweig vae [sic] escrever um livro sobre o Brasil”, dizia a manchete de O Jornal, em 22 de agosto de 1940, um dia após o desembarque do escritor no Rio.
Zweig mandou telegrama de Nova York a seu editor no Brasil
A obra de Dines não é uma biografia convencional. Não é sobre a história do escritor, e sim do livro. Ela conta a história de Brasil, país do futuro – livro em que Zweig retrata o Brasil de forma ufanista e que, dado o contexto da ditadura, levou a acusações de ter-se aliado ao Estado Novo de Getúlio Vargas. Lá estão fotos, cartas, documentos, recortes de jornal, contratos com editoras e telegramas. Todos os textos que acompanham a documentação têm versão em português e alemão: Dines sabe o valor que a documentação compilada pode ter para pesquisadores da língua germânica.
Pesquisador de Zweig há 30 anos
Conhecido por seu trabalho à frente do Observatório da Imprensa, site que criou em 1996, Dines é também incansável pesquisador de Stefan Zweig e hoje preside a Casa Stefan Zweig – entidade sem fins lucrativos que está no processo de transformar a casa onde o escritor viveu e morreu em Petrópolis num centro cultural. Em 1981, ano do centenário de nascimento de Zweig e dos 40 anos de lançamento de Brasil, país do futuro, Dines lançou sua biografia sobre a vida do autor no Brasil: Morte no paraíso – A tragédia de Stefan Zweig.
Longe de sossegar após a publicação da obra, Dines se viu se impelido a fazer sucessivas reformulações de seu texto, devido ao rico material que foi surgindo depois. “Quando o livro saiu, muita gente me procurou dizendo que tinha fotos, cartas e mais uma série de coisas sobre o escritor”, lembra o jornalista. Depois, vieram novas biografias, coletâneas de cartas, publicação de inéditos, e Dines o reescreveu para uma nova edição brasileira (2004), uma alemã (Tod im Paradies. Die Tragödie des Stefan Zweig, 2006) e, atualmente em processo de finalização, uma edição em espanhol.
O jornalista e biógrafo Alberto Dines
Não parece errado dizer que o envolvimento começou quando Dines tinha oito anos. Era 1940, e Zweig, recém-chegado ao Brasil, foi levado por seu editor, Abrahão Koogan, para visitar as duas escolas judaicas do Rio. Dines posou orgulhoso entre seus cerca de 100 coleguinhas na Escola Popular Israelita Brasileira Sholem Aleichem.
“Eu nunca mais esqueci esse dia porque eu já o ‘conhecia', e isso foi um golpe de sorte. Quando ele veio para o Brasil pela primeira vez, em 1936, o meu pai, que era amicíssimo de Koogan, ganhou uma foto autografada por Zweig. Essa foto estava no escritório lá de casa desde que eu me conhecia por gente. Então eu já sabia, quando falaram que ‘o Stefan Zweig vem à escola amanhã', que era um homem importante!”
Novo livro seria o primeiro de uma trilogia
Escrever a biografia, segundo Dines, foi portanto uma forma de dar sequência a um episódio que fazia parte de sua vida. Depois da publicação do livro, ele doou todo o material que reunira na pesquisa para a Biblioteca Nacional. Antes de morrer, Abrahão Koogan fez o mesmo com o rico acervo que tinha sobre Stefan Zweig.
Em conversas entre Dines e seu amigo e ex-presidente da Biblioteca Nacional, Pedro Corrêa do Lago, surgiu a idéia de reunir todo aquele acervo num livro. Um não, três: seria necessário dividir o material em três fases da vida de Zweig, abordando primeiro sua viagem ao Brasil em 1936; depois a criação deBrasil – País do futuro; e depois seu suicídio ao lado da mulher, Lotte, em 1942, em Petrópolis.
Stefan Zweig no país do futuro – a biografia de um livro é o primeiro resultado concreto dessa idéia. Se tudo der certo, no futuro, ele será um volume dessa trilogia. O livro foi coeditado pela Casa Stefan Zweig, Fundação Biblioteca Nacional e a Empresa de Marketing Cultural – EMC Edições.
Para contar a história de Brasil, país do futuro, a obra começa no momento em que o embrião é formado. O leitor vê registros da primeira viagem de Zweig ao Brasil em 1936, quando passou 12 dias entre Rio, São Paulo e Santos, antes de seguir viagem para a Argentina – que saiu em desvantagem por ter sido a segunda escala do escritor, que já saíra do Brasil declaradamente encantado: “Serei ocamelot do Brasil na Europa...!”, disse, na frase pinçada pelo jornal A Noite cujo recorte também consta do livro de Dines. Estava plantada a ideia de escrever “o livro brasileiro”.
Lançamento simultâneo em várias línguas
A vinda para o país em agosto de 1940 e o processo de criação de sua obra sobre o Brasil podem ser acompanhados por documentos como as cartas que Zweig mandava para seu editor, formulários preenchidos para obter vistos no Brasil (a autorização de residência permanente foi concedida a ele e sua esposa em novembro de 1940), recortes de imprensa sobre a maratona de seis dias que fez pelo nordeste brasileiro em pesquisa para o livro, entre muitos outros temas.
Escritor em frente ao Hotel Paysandu, onde passou os primeiros dias no Brasil
Contratos e cartas para negociar o lançamento do livro em grande estilo também estão lá: “O livro foi lançado simultaneamente em vários idiomas, o que foi um feito extraordinário para a época. Imagine! Era 1941, plena guerra mundial”, observa Alberto Dines. Zweig conseguiu lançar o livro em português (com uma edição brasileira e outra portuguesa); alemão, em edição impressa na Suécia; sueco, pela mesma editora; inglês, nos Estados Unidos e na Inglaterra; francês, por uma editora de resistência fixada em Nova York; e espanhol, com alguns meses de atraso.
Apesar de País do futuro ter se tornado um sucesso de vendas – afinal, o fato de o renomado Zweig estar escrevendo um livro sobre o Brasil era um grande chamariz – a recepção da crítica foi “uma das coisas mais tristes que aconteceu em sua vida”, descreve Dines. “O livro foi recebido de forma muito negativa pela crítica. O Brasil vivia uma ditadura penosa, a imprensa estava sob censura. Os intelectuais acharam que, se ele louvava o Brasil, estaria simultaneamente louvando o governo brasileiro.”
Impulso para a depressão?
No livro, Zweig apresentava a teoria de que “a forma brasileira de harmonizar os contrastes podia ser uma solução para o mundo sem guerras”, como resume Dines. Mas a imagem positiva sobre o “país do futuro” foi taxada de propaganda, e a imprensa começou a insinuar que Zweig havia se vendido à ditadura de Vargas. As críticas, também reproduzidas no livro recém-lançado, foram um baque para o escritor. “Zweig era um homem sensível, e isso feriu muito a ele. Morreu, matou-se, seis meses depois.”
Para Dines, seria leviano dizer que o processo de depressão do escritor foi acelerado pelas críticas. “A depressão é um processo antigo. A situação do mundo vinha se agravando, a violência que se via na época era algo muito chocante. Quando ele ouvia sobre o que estava acontecendo na Europa, ficava muito deprimido. Ele era um pacifista integral”, ressalta. Mas, na introdução do livro, Dines diz que vale a pena cultivar a dúvida: “Uma reação mais calorosa ao livro brasileiro teria atenuado a sua depressão?”
Stefan Zweig e sua esposa, Lotte, se suicidaram em fevereiro de 1942. “A morte dele foi de um impacto que você não pode imaginar. Páginas e mais páginas de jornais traziam fotografias dos corpos abraçados. O impacto político também foi muito grande, porque o Brasil estava num 'vai-não-vai' entrar na guerra, já tinha rompido relações com a Alemanha. E a morte do Stefan Zweig, embora não fosse um suicídio político, era um grito contra a guerra.”
Casa Stefan Zweig, um memorial do exílio
O imóvel onde o casal viveu foi adquirido pela Casa Stefan Zweig em 2005. O espaço deve funcionar como um centro cultural para preservar não apenas a memória de Zweig, como também de todos os exilados da guerra que se refugiaram no Brasil entre 1933 e 1945, e se destacaram no campo das artes, cultura e ciência no Brasil.
Zweig e sua esposa, Lotte, viajaram juntos à Argentina
Este ano marca o início das obras: “Vamos restaurar a casa exatamente como ela era, tirando os puxadinhos construídos por sucessivos donos”, diz Dines, que é presidente da Casa Stefan Zweig e na foi recentemente condecorado pelo governo da Áustria por sua contribuição na preservação da memória do escritor nascido em Viena, recebendo a Cruz de Honra para Ciências e Artes no Rio.
O projeto para a casa, assinado pelo arquiteto Miguel Pinto Guimarães, vai recuperar o desenho antigo e acrescentar um auditório, uma biblioteca e um café, conta Dines. No momento, a entidade está tentando driblar a crise mundial para conseguir completar o financiamento para a obra, que está em fase inicial de pesquisas geológicas no terreno. O objetivo é que seja inaugurada em 2012, em tempo para lembrar os 70 anos da trágica morte de Stefan e Lotte Zweig.
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De DEUTSCHE WELLE, 30/04/2009
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