KAREN CURI
Já quis
chutar o balde, o saco, macumba, pedra, barata, latinha, castelo de areia,
gente chata. E chutei. Já quis sambar na avenida, no bloco de rua, na gafieira,
agarradinha, sozinha, na cara da sociedade. E sambei. Já liguei bêbada no meio
da madrugada para dizer “eu te amo”, cedinho para dar “bom dia” e mais tarde
para falar “me esquece”. Liguei para a minha melhor amiga na época em que as
pessoas usavam o telefone para fazer chamada. Falamos sobre nada com coisa
nenhuma e nunca fui tão compreendida! Liguei o som nas alturas, o chuveiro bem
quente, os pontos cruz, o fio vermelho no verde. Liguei a TV só por ligar, o
rádio para não me deprimir com a solidão, o ferro de passar roupa e me esqueci
de desligar. Liguei o abajur e deixei aceso até de manhã. Liguei o foda-se
também. Várias vezes.
Já bati a
porta do carro, a porta de casa, o telefone na cara. Já bati de carro, de
encontro, bati o bolo na mão e um papo agradável. Já bati boca, bati o santo,
bati o olho e foi amor à primeira vista. Já surtei de ciúme, de raiva, de TPM.
Já menstruei em pé no ônibus cheio, na calcinha branca, na sala de aula, na
balada, na praia, na hora H. Já menstruei antecipadamente, no Réveillon, no
carnaval, aniversário, feriado prolongado e depois de alguns dias de atraso —
ufa! Menstruação quando chega atrasada dá um alívio danado!
Já queimei
o arroz, o couro cabeludo, os pés na areia quente, o corpo até dar bolhas. Já
queimei foto do ex, o meu próprio filme, e a cabeça de tanto pensar. Queimei de
ódio e de vergonha. Ah, queimei. Já saí sem hora para voltar, sem juízo, sem
sutiã, sem perfume, celular, chave de casa, protetor solar. Já menti para a
minha mãe quando disse que nunca fui a um baile funk, para o meu pai quando
jurei que nunca tinha beijado, para o meu chefe quando supostamente adoeci na
quarta-feira de cinzas. Menti na primeira e na última vez. E continuo mentindo.
Já me senti
feia, esquisita, desinteressante. Já me incomodei com meus peitos pequenos, mas
já tive muito peito para enfrentar homem folgado, injustiça e abuso de poder.
Teve quem fizesse eu me sentir pequena, mas teve também gente que fez me sentir
gigante. Já tive vergonha por ser magra demais, por ter espinhas, dentes tortos
e um cabelo indomável. Vergonha de dizer sim, de dizer não, de expor o que eu
penso e como me sinto. Algumas vergonhas eu perdi, mas outras eu faço questão
de manter, como, por exemplo, a vergonha na cara.
Já senti a
dor da depilação íntima com cera quente, a dor do parto normal, da pedra nos
rins, dor de dente, enxaqueca e ligamento rompido. Mas nenhuma dor se compara
ao adeus de quem partiu para o novo mundo. Já fui jovem demais para morar
sozinha, tomar um porre e viajar com o namorado. Já fui jovem demais para arcar
com tantas responsabilidades e tomar decisões importantes. Hoje sou velha para
assumir um cargo que compete a uma garota com dez anos menos que eu. Sou velha
para ser imatura, ciumenta, insegura, para ainda não saber o que eu quero para
a minha vida depois de ter vivido mais de três décadas.
Já fui
mocinha e já fui bandida, fui muito boa sem a menor pretensão e bem má com a
pior das intenções. Já fui professora, advogada, médica, arquiteta, psicóloga,
poeta, astróloga, cantora e atriz. Já fui feminista, marxista, vanguardista,
abolicionista, exibicionista. De todas as rimas me sobrou ser colunista. Já
fui hippie e já fui punk, bossa nova e rock and roll. Já fui moderninha,
patricinha, romântica, antiquada, revoltada e descolada.
Nem uma coisa, nem outra. Nem P nem G, nem branca, nem índia, negra ou parda. Ser mulher é ser
tudo ao mesmo tempo. É ser bicho, fêmea, dama e meretriz. É coisa espiritual,
antes mesmo de ser de nascença. Depois que nasce, a mulher vai driblando a vida
no peito e na raça. Chutando, sambando, sangrando, vivendo as suas mil faces,
em mil fases, de mil luas, dentro de mil vidas. E ligando o foda-se de vez em
quando, porque ninguém é de ferro.
_____
De REVISTA
BULA
No comments:
Post a Comment