“Em se plantando,
tudo dá”. Mas há coisas que já davam, e bem, sem terem sido plantadas pelos
colonizadores. Outras, transplantadas, não dão tão bem.
Os colonizadores,
porém, se surpreenderam com o que descobriram por aqui. Tome-se a seguinte
descrição: “É uma fruta do tamanho de uma cidra grande, mas mais comprida; tem
olho da feição das alcachofras, e o corpo lavrado como alcachofra molar, e com
uma ponta e bico em cada sinal das pencas, mas é todo maciço; e muitos (...)
lançam o olho e ao pé do fruto muitos outros tamanhos como alcachofras. A erva
em que se criam (...) é da feição da que em Portugal chamam erva-babosa, mas
não são tão grossas; a qual erva (...) espiga cada ano no meio como cardo, e
lança um grelo da mesma maneira, e em cima dele lhe nasce o fruto, tamanho como
alcachofra, muito vermelho, o qual assim como vai crescendo, vai perdendo a cor
e fazendo-se verde; e como vai amadurecendo, se vai fazendo amarelo acataçolado
de verde, e como é maduro conhece-se pelo cheiro, como o melão”. É assim que
Gabriel Soares dos Santos fala do abacaxi em seu “Tratado Descritivo do Brasil
em 1587”.
Abacaxi acabou
virando sinônimo de coisa maçante, desagradável, problema. Por mais que se
goste de abacaxi ninguém é capaz de comprá-lo ou pedir num restaurante sem
antes perguntar: “O abacaxi está bom?”. Um contrassenso, pois se é um “abacaxi”
não pode ser bom. Uma injustiça, ainda mais porque, ultimamente, eles foram
convertidos, graças a melhorias genéticas, de azedos a invariavelmente
doces.
Darwin, no seu
estudo sobre a seleção artificial, usando o exemplo dos pombos, mostrou como o
homem transforma a natureza ao se relacionar com ela, mesmo que não tenha um
plano finalístico. Teoricamente, esse percurso é de adaptação da natureza às
necessidades humanas conforme entendidas em cada época, mas nem sempre o longo
convívio parece fazer as coisas se desenvolverem para melhor. É o caso de
algumas frutas entre nós.
O inverno é época
dos cítricos. De mexericas (Citrus reticulata), laranjas e limões. Hoje
não raro de gomos secos e sem sabor. Exceto o limão-cravo (derivado de Citrus
aurantium), de aroma sem igual. O que é realmente bom vem de fora, como a
laranja-bahia e o pomelo (Citrus maxima) que vêm do Uruguai, ou o limão
siciliano -uruguaio, argentino ou espanhol. Estragamos os nossos cítricos ao
pensar só em exportação de sucos e precisamos nos socorrer em nossos vizinhos
para termos frutas de mesa. É o “modelo de exportação” fazendo suas vítimas
pelo paladar.
Mesmo quando se
olha só o mercado interno, também é grande o desprezo pelo consumidor. É o que
acontece com um fruto especial para os brasileiros: o tomate. O chef Laurent
Suaudeau não vacilou ao condenar, num evento público sobre gastronomia, os
nossos tomates: são de péssima qualidade. Tomates italianos em lata são o que
de melhor se oferece no mercado. Uma lástima.
Quem haja comido
figos turcos, gregos ou italianos sabe que os nossos, de Valinhos (SP), são uns
degenerados. As peras, farinhentas a maior parte do tempo, deixam a desejar. As
maçãs argentinas, farinhentas, só recentemente foram superadas pelos varietais
desenvolvidos nacionalmente (gala, fuji).
As frutas
encontráveis em supermercados e feiras brasileiros em geral não possuem grande
qualidade. Nem sempre a aclimatação por que passaram deu bom resultado; os
varietais desenvolvidos pararam no tempo ou degeneraram. A percepção disso é
clara, pois mesmo redes de supermercados como o Pão de Açúcar se esforçam por
desenvolver o ramo exótico: uma grande variedade de frutas, importadas da
Colômbia e da Venezuela, é ofertada nas gôndolas das suas lojas mais
elitizadas, à razão de mais de R$ 60 o quilo.
Sem xenofobia ou
nacionalismo gustativo: por que o comércio das frutas nacionais não se
desenvolve no espaço aberto pela saturação do gosto das frutas aclimatadas,
hoje sem qualidade satisfatória?
Dificilmente
existirão no mundo outras frutas com a delicadeza da jabuticaba, do abio, do uxi.
Ou mesmo frutas exóticas tão bem aclimatadas como a quase infinita variedade de
mangas, que andam desaparecendo face às variedades “industrializadas”.
Há 30 anos, as
“rainhas do pomar” eram as mangas “coração de boi”, “coquinho”, “manga rosa”,
“bourbon”, “espada”; estas duas últimas especialmente em São Paulo. O
aprimoramento genético da “haden” como que resumiu todas as variedades numa só;
sacrificou-se a imensidão de aromas e nuances de sabores em favor da fibra
curta, mais fácil de mastigar. A bourbon e espada praticamente desapareceram,
atacadas por pragas terríveis.
Em contraste,
hoje é mais fácil trazer coisas de qualidade (duvidosa) da Colômbia ou
Venezuela, onde existem estruturas comerciais voltadas para a exportação, do
que penetrarmos nos sabores brasileiros. Por exemplo, quem queira frutas da
Amazônia dificilmente conseguirá encontrá-las fora da região, especialmente
fora de Belém do Pará.
Experimente-se
consultar empresas especialistas em fornecê-las1. Raramente são disponibilizadas in natura.
Só em polpas congeladas ou compotas e, assim mesmo, seus representantes fora da
Amazônia dificilmente as possuem em estoque.
Para apreciar os
sabores amazônicos é preciso ir à Amazônia, especialmente na sorveteria
Cairu 2, em Belém. Para os sabores paulistas e mineiros,
ir aos grotões profundos desses estados, espaços onde o progresso haja
resvalado. O Brasil está de costas para os seus sabores nativos, chamados
sintomaticamente de “exóticos” numa subversão vocabular sem paralelo.
A situação
crítica de fruição das frutas nativas leva a uma idealização dos nossos
sabores, começando a gerar uma literatura encomiástica, derivada da botânica3.
A seguir, uma
seleção de frutas nativas e exóticas aclimatadas que mostram a diversidade de
sabores brasileiros quase esquecidos:
Abio (Pouteria
caimito), ou abiu: fruto arredondado, casca amarela, polpa gelatinosa, translúcida ou
ligeiramente brancacenta, de sabor adocicado e de grande delicadeza. Cultivado
em todo o Brasil, encontrado em grande número em estado silvestre na Amazônia,
o que leva a crer que esta seja a sua origem.
Abricó (Mamea
americana, L.): uma verdadeira jóia da Amazônia, embora de origem oriental. Do tamanho de
uma manga grande, fruto redondo, sabor ácido-adocicado, lembra mesmo os abricós
do Oriente, de onde veio no século XVIII.
Anona (anona
muricata, L.): frutos
grandes, escamosos, com polpa mole e muito doce, muito apreciado, considerado
um dos melhores de nossa flora.
Banana (musa,
v. s.), família das musáceas: fruto a ser comido cru ou cozido, maduro ou
verdolengo, seca ao sol ou em doces. Sua enorme variedade foi sufocada pela banana
maçã, nanica e prata. Mas em São Paulo as principais variedades cultivadas na
primeira metade do século XX eram: bananeira anã (musa nana); anã
gigante; da China; da terra; São Thomé (musa sapientium); do
Maranhão; maçã; pacová; nanica; ouro; prata; preta; rainha; roxa. As bananas
“de fritar” são uma categoria em fase de recuperação na gastronomia. Já há
sorvetes de “banana frita”. Por outro lado, doenças ameaçam hoje as bananas no
Brasil. Órgãos de pesquisa correm contra o tempo para salvá-las.
Bacuri (Platonia
insignis): considerada
a rainha das nossas frutas nativas pelos chefs e gourmets que dela provam. Sua
polpa branca-amarelecenta e perfumada oferece um dos sabores mais sutis e
originais da Amazônia. É também a fruta preferida nas feiras de Belém.
Dificilmente encontrável in natura fora da região, mas
encontrável em polpa em conserva para sucos e doçaria.
Caja (spondias): frutos amarelos, ovais, carnosas, sabor
acido-adocicado pronunciado, próprio para refrescos, caipirinhas, confeitaria.
Cambucá (Myrciaria
plicato costata), da família da jabuticaba: fruto redondo e amarelo, de aparência aveludada,
adocicado e levemente ácido, perfumado, encontrado em antigas plantações do
interior de São Paulo.
Cambuci (Campomanesia
phea): parecendo
um minibalão, formato igual da pimenta que leva o seu nome, de cor verde, mesmo
quando maduro, o cambuci, fruta considerada em extinção, é talvez a mais típica
e apreciada da Mata Atlântica. Sua combinação de acidez e adistringência é
única. Muito apreciada para “temperar” cachaças e para sorvetes. O restaurante
DOM é o único a oferecer regulamente sorvete de cambuci.
Jambo (Syzygium
jambos): à
distância, a aparência é de uma goiaba, mas o aroma inebriante, inconfundível,
revela, desde logo, o jambo. Não é fruta de grande sabor, mas o seu aroma
compensa largamente este aspecto. Encontrável no oeste de São Paulo e Minas
Gerais, nos campos e quintais.
Mangostão (Garcinia
mangostana): originária
da Malásia, esta fruta era considerada pela rainha Vitória a mais saborosa do
mundo. Há relatos de tentativas de aclimatá-la no Brasil desde o século XVIII.
Hoje já vem se tornando razoavelmente comum, graças a plantações comerciais no
sul da Bahia, mas ainda relativamente caro. Sua polpa branca, de delicado
equilíbrio entre acidez e doçura, além da magnífica cor interna da sua casca,
fazem do mangostão uma experiência inesquecível para quem possa prová-lo.
Murici (Byrsonima
crassifolia): ocorre
da Amazônia a Minas Gerais. Esta pequena fruta amarela, que os portugueses achavam
de aroma semelhante aos queijos do Alentejo, é bastante ácida, se prestando
para saborosos licores, refrescos e sorvetes.
Uxi (Endopleura
uchi): fruta de
coloração verde-amarelado, árvore de grande altura, comum na Amazônia. Sua
polpa, embora pequena, é de sabor intenso e grande delicadeza, situando-se
entre o abacate e a banana. Um dos sorvetes mais populares da sorveteria Cairu,
em Belém é o de uxi.
Carlos Alberto
Dória, é sociólogo e ensaísta, autor, entre outros livros, de
"Ensaios Enveredados", "Bordado da Fama" e o recém-lançado
"Os Federais da Cultura" (ed. Biruta).
1 -
http://portalamazonia.globo.com/frutas/home.htm; http://www.saboresdaamazonia.com.br/
2 - Endereço:
Travessa 14 de março, 1570, tel.: (91) 267-1476, Belém.
3 - É o caso do
recém-lançado livro de Gil Felippe, “Frutas: sabor à Primeira Mordida” (ed.
Senac, 2005). Deixando para trás a definição botânica de fruta, o autor
pretende transpô-la para o campo da gastronomia, perdendo-se por completo. Para
ele, em gastronomia, fruta se opõe a hortaliça e ambas se distinguem pelo uso
do açúcar ou do sal, o que torna a diferenciação subjetiva, impedindo-o de bem
classificar, por exemplo, o abacate. Livre da botânica, o botânico perde os
trilhos: “Pois não é que em Los Angeles já se faz sorvete de alho? O homem
começou a exagerar mesmo! Ou o desejo de novidades na cozinha está realmente
passando dos limites!”. Na verdade, botânicos, sem o devido preparo
gastronômico, passam dos limites e desvalorizam a própria especialidade. Afora
isso, o livro é uma compilação, interessante para leigos, de frutas reunidas no
monumental livro de Manuel Pio Correa, “Dicionário das plantas úteis do Brasil
e das exóticas cultivadas”, publicado pela Imprensa Nacional em seis volumes,
entre 1926 e 1975. Também aproveita o excelente livro de Paulo B. Cavalcante,
“Frutas Comestíveis da Amazônia”, publicado pelo Museu Emílio Goeldi, em 1996.
As ilustrações originais de Maria Cecília Tomasi valorizam o livro de Gil
Felippe.
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De SEPHATRAD
(blog de Isac Nunes), 13/12/2011
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