JULIA GITIRANA
Se você ainda não
assistiu Mulher Maravilha(2017) da diretora Patty Jenkins,
conhecida por dirigir Monster: Desejo Assassino (2003), pare,
respire e só volte a essa coluna depois de assisti-lo (ou o faça por sua conta
e risco), pois hoje nós vamos distribuir spoilers.
Diana,
interpretada por Gal Gadot, chegou às telonas dando um tapa na cara da
sociedade. Além interromper a recente sequência de fracassos dos filmes
Warner/DC, derrubar todas as críticas prévias da escolha da atriz e do enredo,
o filme implode a falácia infeliz de que o “público não gosta de
super-heroínas” que ecoou depois dos longas-metragens como Super-girl (1984), Mulher-gato (2004)
e Elektra (2005).
A personagem da
DC lançada em 1941 na revista bimestral All-StarComics, no mesmo
ano em que os Estados Unidos declararam estar em guerra após o ataque a Pearl
Harbour, retorna, mais uma, vez ao front para se juntar ao coro de diversas
mulheres da atualidade, que sob nuances diferentes, apontam para diversas
formas de desigualdades de gênero impostas. O objetivo principal do filme é
apresentar obviamente uma das integrantes principais da Liga da Justiça,
entretanto a trama é extremamente original, não apenas por não se concentrar no
velho roteiro da caçada ao vilã mas por se permitir apresentar a complexidade
da personagem pelas vias de uma jornada guiada pelo protagonismo feminino.
Pensando sob essa ótica, gosto de pensar no filme Mulher Maravilha através
da representação de três experiências que constituem a personagem, pelas quais
gostaria de me debruçar para trazer uma possível visão dela.
A jornada da
heroína é introduzida quando ainda criança na Ilha de Themyscira, povoada
apenas por guerreiras amazonas e totalmente protegida por uma espécie de
cortina interdimensional criada por Zeus. A menina curiosa e determinada que
almeja se juntar ao grupo de guerreiras, tem seu sonho vetado, já que sua mãe,
Rainha Hipólita (Connie Nielsen), não apoia, a princípio, a empreitada.
Treinando às escondidas com sua tia, Antíope (Robin Wright), a maior guerreira de
Temiscira, Diana, finalmente consegue o apoio materno para em seguida descobrir
que possui poderes desconhecidos.
Nessa primeira
experiência, que podemos chamar de Princesa de Themyscira, acho duas questões
extremamente interessantes: a indicação de que Diana é uma princesa e a
exibição do seu núcleo familiar. Ao reforçar em vários momentos que Diana é uma
princesa, o filme coloca em xeque uma falsa oposição entre princesas e mulheres
empoderadas. Em vez de reforçar um novo estereótipo e construir um novo modelo
engessado de comportamento, o filme envereda para o direito de ser a
mulher que você quiser ser. Essa experiência de Diana como uma princesa
‘livre’ de Themyscira atravessa diretamente a perspectiva da família. A família
de Diana composta apenas por mulheres é retratada de forma harmônica e madura.
Sem fazer qualquer apelo a uma suposta rivalidade natural entre mulheres, como
muitas vezes é vendido nos grandes enredos hollywoodianos, as mulheres da
família de Diana revelam relações positivas e saudáveis que sustentam uma
aliança existencial e política entre mulheres – é o que Susana Beatriz Gamba
chama de sororidade. Não que não hajam conflitos, basta ver os
diálogos entre a Rainha Hipólita e Antípoda sobre o futuro de Diana.
A segunda
experiência de Diana, ocorre em um cenário totalmente diferente. A transposição
do cenário se dá após a queda do avião do espião Steve Strevor (Chris Pine) na
ilha de Themyscira e a revelação de que o mundo vive uma guerra mundial. Diana,
determinada a colocar um fim na guerra, pois entende que esta é fruto das
manipulações de Ares – inimigo das amazonas na trama -, segue com Steve para a
Inglaterra de 1918. Esse acontecimento da jornada de Diana narra a preparação
dos personagens para chegar à guerra e enfrentar o que cada um caracteriza como
“mal” a ser derrubado.
O interessante
desse acontecimento certamente é o encontro de Diana com o mundo dos homens. A
Princesa de Themescyra agora se complementa com a figura de Diana Prince. Nessa
segunda experiência, Diana Prince esbarra no funcionamento de uma sociedade
totalmente diferente, pois, além de ‘feia’ e cinzenta, estipula possibilidades
diferentes para homens e mulheres. Passando por questões como vestuários e
comportamentos impostos à mulheres, o leve tom de denúncia da imposição de
papéis de gênero, com altas doses de humor, chega ao seu auge, quando Diana
entra numa sala composta por homens da alta cúpula do governo inglês, onde está
o chefe de Steve Trevor. `Convidada´ a ficar do lado de fora da sala, onde se
discute os rumos da guerra mundial, Diana ignora os limites, mas é denunciada
pelo tilintar dos seus sapatos de salto no chão. O som, o rosto e corpo
estranhos naquele ambiente marcam que (supostamente) política não é lugar de
mulher.
Na sequência,
após a negativa dos chefes de Steve para que fosse feita qualquer interferência
no andamento das negociações da guerra, o personagem monta um plano para chegar
a guerra por vias alternativas. Organiza uma equipe com pessoas de sua
confiança para realizar o feito, formado por: Diana (obviamente), Etta Candy
(Lucy Davis), o árabe Sameer (Said Taghmaoui), o escocês Charlie (Ewen Bremner)
e o nativo-americano Chief (Eugene Brave Rock). Diluindo a ópera, até porque
meu ponto não é fazer uma resenha do filme, o grupo finalmente chega a guerra e
precisa decidir que caminhos tomar: o mais rápido para chegar até o vilão, ou o
mais lento e difícil que exige atravessar a linha de fogo entre ingleses e
alemães para salvar pessoas que estariam presas no tiroteio.
Esse último
acontecimento, que gostaria de explorar, aponta o desabrochar da Mulher
Maravilha. Ao som de uma trilha sonora estonteante, Mulher Maravilha ignora as
colocações de Steve, que acha mais adequado ir pelo caminho mais rápido, e joga
o corpo na luta ao atravessar o front. A cena, que me remete
ao livro A guerra não tem rosto de mulher (2016) de
Svetlana Aleksiévitch, mostra de forma extremamente fiel ao quadrinho que
Mulher Maravilha não é uma heroína que se resume ao furor de seus punhos,
chicote e espada, mas na força da crença na humanidade. A cena, que ganha um
peso duplo, quando Patty Jenkins (a diretora do filme) afirmou que precisou
brigar com executivos ligados ao filme para mantê-lá, apresenta uma heroína
incrível que luta com bravura e violência, mas sem perder a ternura para
inclusive derrubar o jargão utilitarista os fins justificam os
meios que sustenta o posicionamento de Steve ( e de grande parte da
humanidade).
Eu poderia passar
mais quatro páginas falando sobre outros pontos do filme, como por exemplo a
relação de afetividade e horizontalidade que se desenvolve entre Diana e Steve
Trevor, mas opto por parar por aqui. Só sei que, como alerta Chimamanda Ngozi
Adiche, Não é fácil conversar sobre questões de gênero, pois
algumas pessoas (ainda) acham o tema inconveniente, desnecessário e às vezes o
encaram como uma provocação. Mulher Maravilha é arrebatador por sem
querer querendo levar para as grandes telas hollywoodianas uma pequena
parte dessas discussões.
* Julia
Gitirana, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito
pela PUC-Rio, especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC, Mestre em
Direito pela PUC-Rio, Doutoranda em Políticas Públicas pela UFPR e apaixonada
por filosofia.
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De REVISTA PROSA VERSO E ARTE, 12/06/2017
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