Duas intelectuais americanas foram estrelas do jet set literário — Susan Sontag e Camille Paglia. Falecida em 2004, aos 71 anos, Sontag não se contentava em ser crítica, comentadora de, entre outros, Machado de Assis, de quem era fã e, de algum modo, imitadora. Tentou também ser prosadora, e esteve no Brasil para lançar, pela Companhia das Letras, seu terceiro romance, “O Amante do Vulcão” (424 páginas). Era mais um crítica tentando mostrar que sabia escrever, talvez até para se justificar como crítica. Detestava Paglia, dizia que a autora de “Personas Sexuais” é uma piada e deveria formar uma banda de rock. É o caso de dizer que Sontag é uma piada e deveria ter criado uma banda de jazz. É briga inútil, de gente quase menor. Paglia começou bem, ganhando elogios de Harold Bloom, mas desandou e passou a escrever ensaios elogiando a cantora Madonna e, mais recentemente, em visita ao Brasil quase chegou a dizer que a cantora Daniela Mercury é a Machado de Assis da música patropi. É melhor comentar autores adultos, como Gustave Flaubert (1821-1880) — autor de “Madame Bovary” (publicado quando tinha 34 anos) e “A Educação Sentimental” — e Edmund Wilson, ensaísta brilhante e até romancista (do terceiro time), autor de “O Castelo de Axel”, “Rumo à Estação Finlândia” (que vendeu mais no Brasil que nos Estados Unidos) e “Sangreira Patriótica” (“Patriotic Gore”).
Wilson faz parte da estirpe dos críticos que descobrem e confirmam autores. Não só reafirmam. Deixa Paglia e Sontag sob o chinelo. Continua atualíssimo, muito copiado e pouco citado por aqueles que roubam suas ideias e as apresentam como suas (Wilson escreveu pioneiramente sobre Marcel Proust e James Joyce, em 1931).
Neste texto, apresento as ideias de Wilson sobre “A política de Flaubert”. O ensaio foi publicado pela Companhia das Letras no livro “11 Ensaios — Literatura, Política, História”, com seleção e prefácio de Paulo Francis (clone patropi de Wilson e George Jean Nathan) e tradução de José Paulo Paes. É uma lição de interpretação e clareza.
O ensaio leva o título de “A po lítica de Flaubert” porque Wilson tenta provar que Flaubert, um esteta refinado, mais conhecido por ser preocupado com a palavra exata e a musicalidade da frase, não era alienado politicamente. Tenta provar e prova — e, como todo bom crítico faz, aponta as limitações do autor no campo político. Ressalva, porém, que a limitação política em nenhum momento “travou” seu talento literário e, mesmo, a capacidade de ver a história com muitas luzes. É o caso de dizer que a literatura de Flaubert é mais iluminadora que suas opiniões políticas. Wilson vai além disso.
Como os bons escritores de sua época, Flaubert era fissurado pela história. “Flaubert deve sua superioridade a seus contemporâneos — Gautier, por exemplo, que professava o mesmo credo literário —, à seriedade de sua preocupação com as grandes questões do destino humano. Era um período [século 19] de intenso interesse pela história; e Flaubert, nos seus pendores intelectuais e nas suas relações, estava tão perto dos historiadores Michelet, Renan e Taine, e do crítico histórico Sainte-Beuve, quanto de Gautier e de Baudelaire.”
Enquanto criticava nos outros a preocupação com os aspectos sociais da literatura, “ele próprio”, aponta Wilson, “parece ter sempre visto a humanidade em termos sociais sob perspectiva histórica”.
Confira seu ponto de vista num comentário a respeito de a “História da Literatura Inglesa”, de Taine: “Há mais na arte além do meio em que é praticada dos antecedentes fisiológicos do artesão. Nesse sistema, pode-se explicar a série, o grupo, mas nunca a individualidade, o fato especial que faz dele esta e não outra pessoa. Semelhante método leva inevitavelmente a desconsiderar o talento. A obra-prima não tem mais nenhuma significância, a não ser como documento histórico. É o velho método crítico de La Harpe virado do avesso. As pessoas costumavam acreditar que a literatura era uma coisa totalmente pessoal e que os livros despencavam do céu como meteoros. Hoje negam que a vontade e o absoluto tenham qualquer realidade. A verdade, no meu entender, se situa entre os dois extremos”.
Wilson observa que à época em que viveu Flaubert, entre 1821 e 1880, a política e os políticos estavam desmoralizados. (Parecia o Brasil. Só que Jânio Quadros, João Goulart, Médici, Figueiredo, José Sir Ney, Fernando Collor, Renan Calheiros, Jáder Barbalho e Romero Jucá tinham outros nomes.) A bagunça política, nota bem Wilson, é a grande fábrica de ceticismo.
No tempo de Flaubert, os escritores “fecharam” com o pessimismo. Quase tudo estava aviltado. “Pelo menos no campo da arte era possível, à custa de um esforço heroico, evitar o aviltamento de valores”, escreve o ensaísta. Essa era a posição de Flaubert, que, numa carta a uma de suas amantes, Louise Colet, escreveu: “Chego mesmo a crer que um pensador (e o que é o artista senão um pensador tríplice?) não deveria ter nem religião nem pátria nem mesmo qualquer convicção social. Parece-me que a dúvida absoluta está, hoje em dia, tão nitidamente indicada que seria quase absurdo querer formulá-la”.
A George Sand (a fascinante escritora Aurore Dupin, 1804-1876, assinava seus livros com nome de homem), es creveu, em 1869: “Os cidadãos que se põem a favor ou contra o Im pério ou a República semelham ser tão úteis quanto os que costumam discutir a graça eficaz e a graça eficiente”.
Nos Estados Unidos, com reflexos na pós-colônia Brasil, está na moda o politicamente correto (é preciso todo cuidado ao se falar nas minorias; sátira sobre negro e gay, nem pensar. A turba, mesmo nos jornais, fica irada). Flaubert era o anti-PC. “Nada o exasperava mais — e podemos hoje simpatizar com ele — do que a ideia segundo a qual a redenção da alma de pende da assunção de opiniões políticas corretas”, escreve Wilson.
Para Wilson, “Flau bert é um idealista trovejante. ‘A ideia’ que surge nas suas cartas dos anos 50 — ‘o gênio como um possante cavalo arrasta a humanidade pelos caminhos da ideia’ — não é mais, evidentemente, sob o disfarce da arte, do que a ‘Ideia’ hegeliana que serviu a Marx e a tantos outros sob muitos e diferentes disfarces. Sente Flaubert haver na humanidade grandes forças de certo modo sufocadas no presente mas que algum dia poderão ser gloriosamente libertadas”.
Escreveu Flaubert: “A alma jaz hoje adormecida, ébria das palavras que ouviu, mas terá um doido despertar em que se há de entregar por inteiro aos êxtases da libertação, pois nada mais haverá então que a possa coagir: nem governo, nem religião, nem uma fórmula; os republicanos de todos os matizes me parecem os mais ferozes dos pedagogos, com seus sonhos de organização, de legislação, de uma sociedade regida como um convento”.
Perspicaz, Wilson capta as incoerências de Flaubert nas suas reflexões políticas — feitas nas cartas, Flaubert escreveu milhares de cartas — e aponta o que é fundamental, a sua escritura. Ele “era um escritor imaginativo, do tipo que trabalha dramaticamente com imagens e não em absoluto com ideias. Manifestou suas opiniões de maneira informal, não sistemática e de improviso, ao contrário de seus livros, tão bem construídos e tão precisos”. Mas vale a pena consultar as cartas, explica Wilson, porque, embora não exponham uma filosofia sistemática, “indicam os instintos e as emoções que são os motores primeiros do mundo da sua arte”.
Flaubert fazia “oposição” aos socialistas. Desagradava-lhe sobretudo o materialismo e o autoritarismo socialistas. Numa interpretação curiosa, dizia que o autoritarismo deles derivava diretamente da tradição da Igreja (convém lembrar que o anjinhos Stálin — ex-ídolo do PC o B do ministro do Esporte, Aldo Rebelo — e Fidel Castro foram educados por jesuítas).
“Algo que ele [Flaubert] torna claro é a sua desaprovação do ideal de igualdade. O que falta, insiste, é ‘justiça’, e por trás dessa exigência de justiça está evidentemente o ressentimento de Flaubert, por experiência própria, com as falsas reputações, os prêmios imerecidos e as estúpidas repressões do Segundo Império. Ele se mostrava cético quanto à educação popular e se opunha ao sufrágio universal”, disserta Wilson.
A leitura que Wilson faz das obras de Flaubert é um espetáculo de rigor intelectual e inteligência. “Não é verdade, como às vezes se supõe, que ele repudiasse qualquer intenção moral. Recusou-se de caso pensado, isto sim, a comentar a ação de seus romances na qualidade de autor. ‘O artista não deve aparecer em sua própria obra, assim como Deus não aparece na natureza’. Mas, a exemplo de Deus, ele governa seu universo por meio da lei; e o leitor, pelo que ouve e vê, deve inferir o sistema moral.”
O vilão nos romances “Madame Bovary” e “A Educação Sen ti mental” é o burguês. “É verdade, também, que esses dois romances de Flaubert reprovam o mundo contemporâneo tão categoricamente quanto foram franca e dogmaticamente exaltados os mundos de ‘Salambô’ e de ‘As Tentações de Santo Antão’ [não é, claro, o melhor Flaubert, mas o menor Flaubert é maior que Sontag e cia]. Há, todavia, nesses quadros da vida moderna, maior complexidade de valores e uma análise de processos sociais que não aparece nos livros acerca do passado; e essa análise social de Flaubert tem sido por demais negligenciada, o que resultou na depreciação de um dos seus maiores livros, ‘A Educação Sentimental’.”
Em “Madame Bovary”, argumenta Wilson, Flaubert critica a nostalgia do exótico que desempenhou tão grande papel em sua própria vida e que o levou a escrever “Salambô” e “Santo Antão”. Na opinião de Wilson, “o que isola Flaubert dos outros românticos e o torna fundamentalmente um crítico social é sua impiedosa compreensão da futilidade de sonhar com os esplendores do Oriente e os belos dias do passado como um antídoto para a sociedade burguesa. Ema Bovary, esposa de um modesto médico rural, está-se vendo sempre em algum outro cenário, imaginando-se outra pessoa. Jamais enfrenta sua situação tal como ela é, e por isso é finalmente arruinada pelas realidades que tem tentado ignorar. O resultado de todos os anseios de Ema a uma vida mais ampla e sedutora é a sua pobre filhinha, deixada órfã pelo suicídio dela e pela morte do pai, ser enviada a trabalhar numa fiação de algodão”.
Numa interpretação original, Wilson observa que Flaubert tinha mais em comum com o pensamento socialista de sua época e foi talvez influenciado por ele mais do que algum dia se permitiria confessar. “Nos seus romances, nunca é a nobreza, cuja mediocridade não se distingue da burguesia, e sim os camponeses e os trabalhadores que figuram como pedra de toque para ressaltar a mesquinhez e a capciosidade do burguês. Uma das cenas notáveis de ‘Madame Bovary’ é a exposição agrícola em que os pomposos dignatários locais concedem uma medalha a uma velha criada por 45 anos de serviço na mesma granja. Flaubert nos falou demoradamente da burguesia, fez-nos escutar um longo discurso de um conselheiro municipal sobre a próspera situação da França; e agora nos descreve a camponesa — assustada com as bandeiras e os tambores, com os cavalheiros de casaca preta e sem compreender o que querem dela. (...) A heroína de ‘Um Coração Singelo’, uma criada que devota toda a sua vida ao serviço de uma família de província e não recebe em troca um só lampejo de afeto, tem igual dignidade e pathos.”
Mas é em “A Educação Sen timental”, destaca Wilson, “que a visão flaubertiana da sociedade mais se avizinha da teoria socialista. Na verdade, a apresentação que Flau bert faz da Revolução de 1848 se aproxima de modo tão impressionante da análise de Marx dos mesmos acontecimentos, em ‘O 18 Brumário de Luís Bonaparte’, que vale a pena examinar sob o mesmo foco as figuras diversas de Flaubert e Marx a fim de ver como dois grandes espíritos do século passado, seguindo caminhos tão diversos na aparência, chegaram a interpretações tão idênticas de fatos de sua própria época”.
Marx e Flaubert, afirma Wilson, detestavam implacavelmente o burguês e ambos estavam decididos, ao preço de qualquer sucesso mundano, a manter-se fora do sistema burguês. Marx, como Flaubert, partilhava em certa medida o viés romântico em favor do passado.
“A Educação Sentimental” é visto por Wilson como um grande romance social. “Frédéric Moreau, o herói do romance, é um jovem sensível, inteligente e de certa renda; não tem, contudo, firmeza de propósitos nem é capaz de nenhuma integridade emotiva.” Moreau é apaixonado pela mulher de uma espécie de PC Farias, o esquecido protegido do hoje senador Fernando Collor. Mas é tímido e a mulher, virtuosa. O amor não acaba na cama. “Flaubert nos torna claro, todavia, que no fundo Frédéric e o marido vulgar representam a mesma coisa: o primeiro é apenas o lado mais refinado e mais incompetente da mediocridade da classe média, da qual o outro é o mais vistoso e ativo.” Flaubert era pouco “cristão” com seus personagens — tipos, de algum modo, extraídos da realidade.
Os únicos personagens realmente simpáticos em “A Educação Sen timental”, avalia Wil son, “são os representantes do povo. Ro sanette, a amante de Frédéric, é filha de operários pobres nas fiações de seda, que a venderam aos 15 anos a um burguês idoso. Sua ligação com Frédéric é um símbolo da união desastrosamente fugaz entre o proletariado e a burguesia, acerca da qual Marx escreve em ‘O 18 Brumário’. (...) E o socialismo burguês recebe um tratamento bem marxista no personagem Sénécal, que se torna desprezível por sua insistência no comunismo e no bem-estar das massas, pelas quais está pronto a morrer até a última barricada. Quando, porém, conseguem um emprego de capataz numa cerâmica, Sénécal se revela um inexorável tiranete”.
Quando publicado pela primeira vez, “A Educação Sentimental” não agradou a maioria dos leitores. Por quê? Simples de responder: não tinha os amores das noveletas baratas — próprias para quem tem cérebro mignon — de, por exemplo, Sidney Sheldon e Harold Robbins, tampouco a falta de miolos de um Paulo Coelho, o maior embromador “literário” da atualidade (o que surpreende é sua capacidade de “iludir” gente inteligente, como Fernando Morais, seu biógrafo-ficcionista). O romance, segundo Wilson, “tem jeito de ser uma história de amor, mas os casos amorosos se revelam tão sistematicamente irrealizados ou tíbios que acabamos ficando irritados ou deprimidos. Seria uma sátira? É real demais para ser sátira”. Fundamental: é um romance que “nos fez [ainda faz] a cabeça”, escreveu Wilson.
A guerra de 1870 transtornou a cabeçorra de Flaubert. Os prussianos invadiram sua casa e ele se viu obrigado a enterrar seus manuscritos. Ao passear por Paris, depois da Comuna, voltou para o campo decepcionado. Aos ver os destroços das Tulherias, disse: “Isso jamais teria acontecido se tivessem compreendido ‘A Educação Sentimental’”. O que ele quis dizer? Wilson arrisca: “É de supor que teria querido dizer com isso que, se houvessem compreendido a falsidade de sua própria política, jamais teriam feito tanto estrago por conta dela”. A George Sand, escreveu: “Oh, como estou cansado do trabalhador ignóbil, do burguês inepto, do campônio estúpido e do odioso clérigo”. Não perdoava ninguém. Talvez só ele.
Qual foi o efeito da Comuna de Paris sobre Flaubert? Para Wilson, “foi trazer à luz o burguês consciente de sua classe que nele havia. Fundamentalmente burguês no modo de vida, ele sempre o tinha sido, com sua mãe e sua pequena renda. (...) Foi a duradoura tradição do classicismo francês que o salvou da vulgaridade dominante: mercê de disciplina e objetividade, de heroica aplicação à mestria da forma, mantivera ele o seu mundo a distância. Mas agora que um governo de classe operária havia dominado Paris durante dois meses e meio, arruinando monumentos e fuzilando reféns burgueses, Flaubert se voltou contra os communards com tanta ferocidade quanto qualquer ‘merceeiro’ respeitável. ‘Minha opinião’, escreveu a George Sand, ‘é que toda a Comuna devia ter sido condenada às galés, todos esses sanguinários idiotas deveriam ter sido obrigados a limpar Paris das ruínas, com argolas e correntes no pescoço como condenados. Mas isso teria sido uma ofensa à humanidade. Tratam com brandura o cão danado, mas não as pessoas que foram mordidas’”.
Com raiva crescente, escreveu ao amigo Ernest Feydeau: “Nunca, meu velho e bom camarada, senti tamanho nojo da humanidade. Gostaria de afogar a raça humana no meu vômito”. Mas o importante mesmo são os livros de Flaubert. No Brasil, há três traduções de “Madame Bovary” (Abril Cultural, Nova Alexandria e Companhia das Letras/Penguin) e traduções de “A Edu cação Sentimental” (Cír culo do Livro/Difel), “Salambô” (Max Li mo nad), “Bou vard e Pécu chet” (Nova Fron teira), “As Tentações de Santo Antão” (Ilu mi nuras) e “Um Coração Singelo” (Rocco, com apresentação de Fer nando Sabino). Há algumas adaptações para o cinema de “Madame Bovary”. A de Claude Chabrol, cineasta francês, é uma das mais conhecidas.
O sóbrio Edmund Wilson não quis escarafunchar a vida de Gustave Flaubert, um libertino talentoso. Mas Louis Untermeyer, no débil “Os Forjadores do Mundo Moderno”, abre-nos os caminhos para as fofocas sobre um dos maiores escritores franceses de todos os tempos (Proust e Stendhal são seus pares). Herbert Lottman escreveu a biografia “Flaubert”. Frederick Brown é autor de “Flaubert — A Life”. Henry James escreveu “Gustave Flaubert” (7 Letras), mas não é uma biografia, e sim um ensaio atento sobre Flaubert. Mario Vargas Llosa é autor do seminal “A Orgia Perpétua — Flaubert e Madame Bovary”.
Flaubert, o sujeito que dizia que o tema não contava, o importante era o estilo, começou a escrever cedo. Menino, já se propunha a escrever estórias. Estudante de Direito, achava que o Código Civil era um “estúpido disparate”. Segundo Untermeyer, “levava uma vida de bon vivant, ganhou certa reputação de gourmet, frequentava o teatro com regularidade, gastava despreocupadamente o dinheiro que a família lhe mandava e desfrutava de tudo, menos das mulheres”. Aviso rápido: não era homossexual.
Era forte e simpático. As moças ficavam agitadas perto dele. Ma xime du Camp escreveu: “Aquele homem era de uma beleza heroica. Com sua pele branca, ligeiramente rosada nas maçãs do rosto, seus belos e longos cabelos ondulados. Sua figura alta de ombros largos, seus olhos enormes — de cor verde-mar — velados sob sobrancelhas negras, com uma voz tão sonora como o toque de uma trombeta...” (as ilustrações mostram um Flaubert feio, talvez porque o mostrem mais velho e gordo).
O vigoroso Flaubert permaneceu virgem até quase os 23 anos. Acabou seduzido por uma criada. Mau aluno, Flaubert ainda por cima era doente. “Antes de ficar inconsciente, caía em êxtase, ouvia sons rouquenhos e via luzes de ouro acompanhadas de estranhas imagens que esvoaçavam em torno dele.” Os médicos diziam que não era epilepsia. Garantiam que ele tinha demasiada energia e diagnosticaram sua situação como “pletora de vitalidade” que se manifestava em ataques “histérico-epilépticos”. Confessou a George Sand temer a vida.
Homem ardente, ao descobrir as mulheres, roubou a amante do filósofo Victor Cousin, Louise Colet. Mas cansou-se das exigências da amante e fugiu dela. Flau bert amava sua própria solidão. Pare ele, era impossível uma relação diária normal com uma mulher, fosse esposa ou amante. Só se cercava de livros que lhe apetecia ler e escrever. “Não gosto de nada mais do que de me ver numa casa cômoda, com boa calefação, ter muito tempo livre e dispor de meus livros prediletos.”
Madame Bovary era Flaubert ou existiu mesmo? Existiu. Era a mulher do doutor Delaunay, médico, amigo e colega do pai de Flaubert. Ele se matou ao saber das infidelidades da mulher. “Com estes fatos como base estrutural, Flaubert passou quatro penosos anos trabalhando em ‘Madame Bovary’.” “Flaubert pensou em Louise [sua amante] quando escreveu que Ema encontrou no adultério ‘todas as trivialidades do matrimônio’.” O livro foi publicado em 1856. Flaubert e o editor foram levados aos tribunais. Acusação: imoralidade. O livro seria pornográfico.
Flaubert dizia não escrever com facilidade, sobretudo porque era perfeccionista. “Passei três dias fazendo duas correções. Passei a segunda e a terça-feira inteiras a procurar duas linhas que afinal não encontrei.” A obra mais divertida de Flaubert, “Bouvard e Pécuchet”, ficou incompleta. É deliciosa. Seu “Dicionário de Ideias Feitas” é chute na república da citação, no bacharelismo. É um grande tolicionário. Flaubert morreu aos 59 anos, em 1880.
Wilson faz parte da estirpe dos críticos que descobrem e confirmam autores. Não só reafirmam. Deixa Paglia e Sontag sob o chinelo. Continua atualíssimo, muito copiado e pouco citado por aqueles que roubam suas ideias e as apresentam como suas (Wilson escreveu pioneiramente sobre Marcel Proust e James Joyce, em 1931).
Neste texto, apresento as ideias de Wilson sobre “A política de Flaubert”. O ensaio foi publicado pela Companhia das Letras no livro “11 Ensaios — Literatura, Política, História”, com seleção e prefácio de Paulo Francis (clone patropi de Wilson e George Jean Nathan) e tradução de José Paulo Paes. É uma lição de interpretação e clareza.
O ensaio leva o título de “A po lítica de Flaubert” porque Wilson tenta provar que Flaubert, um esteta refinado, mais conhecido por ser preocupado com a palavra exata e a musicalidade da frase, não era alienado politicamente. Tenta provar e prova — e, como todo bom crítico faz, aponta as limitações do autor no campo político. Ressalva, porém, que a limitação política em nenhum momento “travou” seu talento literário e, mesmo, a capacidade de ver a história com muitas luzes. É o caso de dizer que a literatura de Flaubert é mais iluminadora que suas opiniões políticas. Wilson vai além disso.
Como os bons escritores de sua época, Flaubert era fissurado pela história. “Flaubert deve sua superioridade a seus contemporâneos — Gautier, por exemplo, que professava o mesmo credo literário —, à seriedade de sua preocupação com as grandes questões do destino humano. Era um período [século 19] de intenso interesse pela história; e Flaubert, nos seus pendores intelectuais e nas suas relações, estava tão perto dos historiadores Michelet, Renan e Taine, e do crítico histórico Sainte-Beuve, quanto de Gautier e de Baudelaire.”
Enquanto criticava nos outros a preocupação com os aspectos sociais da literatura, “ele próprio”, aponta Wilson, “parece ter sempre visto a humanidade em termos sociais sob perspectiva histórica”.
Confira seu ponto de vista num comentário a respeito de a “História da Literatura Inglesa”, de Taine: “Há mais na arte além do meio em que é praticada dos antecedentes fisiológicos do artesão. Nesse sistema, pode-se explicar a série, o grupo, mas nunca a individualidade, o fato especial que faz dele esta e não outra pessoa. Semelhante método leva inevitavelmente a desconsiderar o talento. A obra-prima não tem mais nenhuma significância, a não ser como documento histórico. É o velho método crítico de La Harpe virado do avesso. As pessoas costumavam acreditar que a literatura era uma coisa totalmente pessoal e que os livros despencavam do céu como meteoros. Hoje negam que a vontade e o absoluto tenham qualquer realidade. A verdade, no meu entender, se situa entre os dois extremos”.
Wilson observa que à época em que viveu Flaubert, entre 1821 e 1880, a política e os políticos estavam desmoralizados. (Parecia o Brasil. Só que Jânio Quadros, João Goulart, Médici, Figueiredo, José Sir Ney, Fernando Collor, Renan Calheiros, Jáder Barbalho e Romero Jucá tinham outros nomes.) A bagunça política, nota bem Wilson, é a grande fábrica de ceticismo.
No tempo de Flaubert, os escritores “fecharam” com o pessimismo. Quase tudo estava aviltado. “Pelo menos no campo da arte era possível, à custa de um esforço heroico, evitar o aviltamento de valores”, escreve o ensaísta. Essa era a posição de Flaubert, que, numa carta a uma de suas amantes, Louise Colet, escreveu: “Chego mesmo a crer que um pensador (e o que é o artista senão um pensador tríplice?) não deveria ter nem religião nem pátria nem mesmo qualquer convicção social. Parece-me que a dúvida absoluta está, hoje em dia, tão nitidamente indicada que seria quase absurdo querer formulá-la”.
A George Sand (a fascinante escritora Aurore Dupin, 1804-1876, assinava seus livros com nome de homem), es creveu, em 1869: “Os cidadãos que se põem a favor ou contra o Im pério ou a República semelham ser tão úteis quanto os que costumam discutir a graça eficaz e a graça eficiente”.
Nos Estados Unidos, com reflexos na pós-colônia Brasil, está na moda o politicamente correto (é preciso todo cuidado ao se falar nas minorias; sátira sobre negro e gay, nem pensar. A turba, mesmo nos jornais, fica irada). Flaubert era o anti-PC. “Nada o exasperava mais — e podemos hoje simpatizar com ele — do que a ideia segundo a qual a redenção da alma de pende da assunção de opiniões políticas corretas”, escreve Wilson.
Para Wilson, “Flau bert é um idealista trovejante. ‘A ideia’ que surge nas suas cartas dos anos 50 — ‘o gênio como um possante cavalo arrasta a humanidade pelos caminhos da ideia’ — não é mais, evidentemente, sob o disfarce da arte, do que a ‘Ideia’ hegeliana que serviu a Marx e a tantos outros sob muitos e diferentes disfarces. Sente Flaubert haver na humanidade grandes forças de certo modo sufocadas no presente mas que algum dia poderão ser gloriosamente libertadas”.
Escreveu Flaubert: “A alma jaz hoje adormecida, ébria das palavras que ouviu, mas terá um doido despertar em que se há de entregar por inteiro aos êxtases da libertação, pois nada mais haverá então que a possa coagir: nem governo, nem religião, nem uma fórmula; os republicanos de todos os matizes me parecem os mais ferozes dos pedagogos, com seus sonhos de organização, de legislação, de uma sociedade regida como um convento”.
Perspicaz, Wilson capta as incoerências de Flaubert nas suas reflexões políticas — feitas nas cartas, Flaubert escreveu milhares de cartas — e aponta o que é fundamental, a sua escritura. Ele “era um escritor imaginativo, do tipo que trabalha dramaticamente com imagens e não em absoluto com ideias. Manifestou suas opiniões de maneira informal, não sistemática e de improviso, ao contrário de seus livros, tão bem construídos e tão precisos”. Mas vale a pena consultar as cartas, explica Wilson, porque, embora não exponham uma filosofia sistemática, “indicam os instintos e as emoções que são os motores primeiros do mundo da sua arte”.
Flaubert fazia “oposição” aos socialistas. Desagradava-lhe sobretudo o materialismo e o autoritarismo socialistas. Numa interpretação curiosa, dizia que o autoritarismo deles derivava diretamente da tradição da Igreja (convém lembrar que o anjinhos Stálin — ex-ídolo do PC o B do ministro do Esporte, Aldo Rebelo — e Fidel Castro foram educados por jesuítas).
“Algo que ele [Flaubert] torna claro é a sua desaprovação do ideal de igualdade. O que falta, insiste, é ‘justiça’, e por trás dessa exigência de justiça está evidentemente o ressentimento de Flaubert, por experiência própria, com as falsas reputações, os prêmios imerecidos e as estúpidas repressões do Segundo Império. Ele se mostrava cético quanto à educação popular e se opunha ao sufrágio universal”, disserta Wilson.
A leitura que Wilson faz das obras de Flaubert é um espetáculo de rigor intelectual e inteligência. “Não é verdade, como às vezes se supõe, que ele repudiasse qualquer intenção moral. Recusou-se de caso pensado, isto sim, a comentar a ação de seus romances na qualidade de autor. ‘O artista não deve aparecer em sua própria obra, assim como Deus não aparece na natureza’. Mas, a exemplo de Deus, ele governa seu universo por meio da lei; e o leitor, pelo que ouve e vê, deve inferir o sistema moral.”
O vilão nos romances “Madame Bovary” e “A Educação Sen ti mental” é o burguês. “É verdade, também, que esses dois romances de Flaubert reprovam o mundo contemporâneo tão categoricamente quanto foram franca e dogmaticamente exaltados os mundos de ‘Salambô’ e de ‘As Tentações de Santo Antão’ [não é, claro, o melhor Flaubert, mas o menor Flaubert é maior que Sontag e cia]. Há, todavia, nesses quadros da vida moderna, maior complexidade de valores e uma análise de processos sociais que não aparece nos livros acerca do passado; e essa análise social de Flaubert tem sido por demais negligenciada, o que resultou na depreciação de um dos seus maiores livros, ‘A Educação Sentimental’.”
Em “Madame Bovary”, argumenta Wilson, Flaubert critica a nostalgia do exótico que desempenhou tão grande papel em sua própria vida e que o levou a escrever “Salambô” e “Santo Antão”. Na opinião de Wilson, “o que isola Flaubert dos outros românticos e o torna fundamentalmente um crítico social é sua impiedosa compreensão da futilidade de sonhar com os esplendores do Oriente e os belos dias do passado como um antídoto para a sociedade burguesa. Ema Bovary, esposa de um modesto médico rural, está-se vendo sempre em algum outro cenário, imaginando-se outra pessoa. Jamais enfrenta sua situação tal como ela é, e por isso é finalmente arruinada pelas realidades que tem tentado ignorar. O resultado de todos os anseios de Ema a uma vida mais ampla e sedutora é a sua pobre filhinha, deixada órfã pelo suicídio dela e pela morte do pai, ser enviada a trabalhar numa fiação de algodão”.
Numa interpretação original, Wilson observa que Flaubert tinha mais em comum com o pensamento socialista de sua época e foi talvez influenciado por ele mais do que algum dia se permitiria confessar. “Nos seus romances, nunca é a nobreza, cuja mediocridade não se distingue da burguesia, e sim os camponeses e os trabalhadores que figuram como pedra de toque para ressaltar a mesquinhez e a capciosidade do burguês. Uma das cenas notáveis de ‘Madame Bovary’ é a exposição agrícola em que os pomposos dignatários locais concedem uma medalha a uma velha criada por 45 anos de serviço na mesma granja. Flaubert nos falou demoradamente da burguesia, fez-nos escutar um longo discurso de um conselheiro municipal sobre a próspera situação da França; e agora nos descreve a camponesa — assustada com as bandeiras e os tambores, com os cavalheiros de casaca preta e sem compreender o que querem dela. (...) A heroína de ‘Um Coração Singelo’, uma criada que devota toda a sua vida ao serviço de uma família de província e não recebe em troca um só lampejo de afeto, tem igual dignidade e pathos.”
Mas é em “A Educação Sen timental”, destaca Wilson, “que a visão flaubertiana da sociedade mais se avizinha da teoria socialista. Na verdade, a apresentação que Flau bert faz da Revolução de 1848 se aproxima de modo tão impressionante da análise de Marx dos mesmos acontecimentos, em ‘O 18 Brumário de Luís Bonaparte’, que vale a pena examinar sob o mesmo foco as figuras diversas de Flaubert e Marx a fim de ver como dois grandes espíritos do século passado, seguindo caminhos tão diversos na aparência, chegaram a interpretações tão idênticas de fatos de sua própria época”.
Marx e Flaubert, afirma Wilson, detestavam implacavelmente o burguês e ambos estavam decididos, ao preço de qualquer sucesso mundano, a manter-se fora do sistema burguês. Marx, como Flaubert, partilhava em certa medida o viés romântico em favor do passado.
“A Educação Sentimental” é visto por Wilson como um grande romance social. “Frédéric Moreau, o herói do romance, é um jovem sensível, inteligente e de certa renda; não tem, contudo, firmeza de propósitos nem é capaz de nenhuma integridade emotiva.” Moreau é apaixonado pela mulher de uma espécie de PC Farias, o esquecido protegido do hoje senador Fernando Collor. Mas é tímido e a mulher, virtuosa. O amor não acaba na cama. “Flaubert nos torna claro, todavia, que no fundo Frédéric e o marido vulgar representam a mesma coisa: o primeiro é apenas o lado mais refinado e mais incompetente da mediocridade da classe média, da qual o outro é o mais vistoso e ativo.” Flaubert era pouco “cristão” com seus personagens — tipos, de algum modo, extraídos da realidade.
Os únicos personagens realmente simpáticos em “A Educação Sen timental”, avalia Wil son, “são os representantes do povo. Ro sanette, a amante de Frédéric, é filha de operários pobres nas fiações de seda, que a venderam aos 15 anos a um burguês idoso. Sua ligação com Frédéric é um símbolo da união desastrosamente fugaz entre o proletariado e a burguesia, acerca da qual Marx escreve em ‘O 18 Brumário’. (...) E o socialismo burguês recebe um tratamento bem marxista no personagem Sénécal, que se torna desprezível por sua insistência no comunismo e no bem-estar das massas, pelas quais está pronto a morrer até a última barricada. Quando, porém, conseguem um emprego de capataz numa cerâmica, Sénécal se revela um inexorável tiranete”.
Quando publicado pela primeira vez, “A Educação Sentimental” não agradou a maioria dos leitores. Por quê? Simples de responder: não tinha os amores das noveletas baratas — próprias para quem tem cérebro mignon — de, por exemplo, Sidney Sheldon e Harold Robbins, tampouco a falta de miolos de um Paulo Coelho, o maior embromador “literário” da atualidade (o que surpreende é sua capacidade de “iludir” gente inteligente, como Fernando Morais, seu biógrafo-ficcionista). O romance, segundo Wilson, “tem jeito de ser uma história de amor, mas os casos amorosos se revelam tão sistematicamente irrealizados ou tíbios que acabamos ficando irritados ou deprimidos. Seria uma sátira? É real demais para ser sátira”. Fundamental: é um romance que “nos fez [ainda faz] a cabeça”, escreveu Wilson.
A guerra de 1870 transtornou a cabeçorra de Flaubert. Os prussianos invadiram sua casa e ele se viu obrigado a enterrar seus manuscritos. Ao passear por Paris, depois da Comuna, voltou para o campo decepcionado. Aos ver os destroços das Tulherias, disse: “Isso jamais teria acontecido se tivessem compreendido ‘A Educação Sentimental’”. O que ele quis dizer? Wilson arrisca: “É de supor que teria querido dizer com isso que, se houvessem compreendido a falsidade de sua própria política, jamais teriam feito tanto estrago por conta dela”. A George Sand, escreveu: “Oh, como estou cansado do trabalhador ignóbil, do burguês inepto, do campônio estúpido e do odioso clérigo”. Não perdoava ninguém. Talvez só ele.
Qual foi o efeito da Comuna de Paris sobre Flaubert? Para Wilson, “foi trazer à luz o burguês consciente de sua classe que nele havia. Fundamentalmente burguês no modo de vida, ele sempre o tinha sido, com sua mãe e sua pequena renda. (...) Foi a duradoura tradição do classicismo francês que o salvou da vulgaridade dominante: mercê de disciplina e objetividade, de heroica aplicação à mestria da forma, mantivera ele o seu mundo a distância. Mas agora que um governo de classe operária havia dominado Paris durante dois meses e meio, arruinando monumentos e fuzilando reféns burgueses, Flaubert se voltou contra os communards com tanta ferocidade quanto qualquer ‘merceeiro’ respeitável. ‘Minha opinião’, escreveu a George Sand, ‘é que toda a Comuna devia ter sido condenada às galés, todos esses sanguinários idiotas deveriam ter sido obrigados a limpar Paris das ruínas, com argolas e correntes no pescoço como condenados. Mas isso teria sido uma ofensa à humanidade. Tratam com brandura o cão danado, mas não as pessoas que foram mordidas’”.
Com raiva crescente, escreveu ao amigo Ernest Feydeau: “Nunca, meu velho e bom camarada, senti tamanho nojo da humanidade. Gostaria de afogar a raça humana no meu vômito”. Mas o importante mesmo são os livros de Flaubert. No Brasil, há três traduções de “Madame Bovary” (Abril Cultural, Nova Alexandria e Companhia das Letras/Penguin) e traduções de “A Edu cação Sentimental” (Cír culo do Livro/Difel), “Salambô” (Max Li mo nad), “Bou vard e Pécu chet” (Nova Fron teira), “As Tentações de Santo Antão” (Ilu mi nuras) e “Um Coração Singelo” (Rocco, com apresentação de Fer nando Sabino). Há algumas adaptações para o cinema de “Madame Bovary”. A de Claude Chabrol, cineasta francês, é uma das mais conhecidas.
O sóbrio Edmund Wilson não quis escarafunchar a vida de Gustave Flaubert, um libertino talentoso. Mas Louis Untermeyer, no débil “Os Forjadores do Mundo Moderno”, abre-nos os caminhos para as fofocas sobre um dos maiores escritores franceses de todos os tempos (Proust e Stendhal são seus pares). Herbert Lottman escreveu a biografia “Flaubert”. Frederick Brown é autor de “Flaubert — A Life”. Henry James escreveu “Gustave Flaubert” (7 Letras), mas não é uma biografia, e sim um ensaio atento sobre Flaubert. Mario Vargas Llosa é autor do seminal “A Orgia Perpétua — Flaubert e Madame Bovary”.
Flaubert, o sujeito que dizia que o tema não contava, o importante era o estilo, começou a escrever cedo. Menino, já se propunha a escrever estórias. Estudante de Direito, achava que o Código Civil era um “estúpido disparate”. Segundo Untermeyer, “levava uma vida de bon vivant, ganhou certa reputação de gourmet, frequentava o teatro com regularidade, gastava despreocupadamente o dinheiro que a família lhe mandava e desfrutava de tudo, menos das mulheres”. Aviso rápido: não era homossexual.
Era forte e simpático. As moças ficavam agitadas perto dele. Ma xime du Camp escreveu: “Aquele homem era de uma beleza heroica. Com sua pele branca, ligeiramente rosada nas maçãs do rosto, seus belos e longos cabelos ondulados. Sua figura alta de ombros largos, seus olhos enormes — de cor verde-mar — velados sob sobrancelhas negras, com uma voz tão sonora como o toque de uma trombeta...” (as ilustrações mostram um Flaubert feio, talvez porque o mostrem mais velho e gordo).
O vigoroso Flaubert permaneceu virgem até quase os 23 anos. Acabou seduzido por uma criada. Mau aluno, Flaubert ainda por cima era doente. “Antes de ficar inconsciente, caía em êxtase, ouvia sons rouquenhos e via luzes de ouro acompanhadas de estranhas imagens que esvoaçavam em torno dele.” Os médicos diziam que não era epilepsia. Garantiam que ele tinha demasiada energia e diagnosticaram sua situação como “pletora de vitalidade” que se manifestava em ataques “histérico-epilépticos”. Confessou a George Sand temer a vida.
Homem ardente, ao descobrir as mulheres, roubou a amante do filósofo Victor Cousin, Louise Colet. Mas cansou-se das exigências da amante e fugiu dela. Flau bert amava sua própria solidão. Pare ele, era impossível uma relação diária normal com uma mulher, fosse esposa ou amante. Só se cercava de livros que lhe apetecia ler e escrever. “Não gosto de nada mais do que de me ver numa casa cômoda, com boa calefação, ter muito tempo livre e dispor de meus livros prediletos.”
Madame Bovary era Flaubert ou existiu mesmo? Existiu. Era a mulher do doutor Delaunay, médico, amigo e colega do pai de Flaubert. Ele se matou ao saber das infidelidades da mulher. “Com estes fatos como base estrutural, Flaubert passou quatro penosos anos trabalhando em ‘Madame Bovary’.” “Flaubert pensou em Louise [sua amante] quando escreveu que Ema encontrou no adultério ‘todas as trivialidades do matrimônio’.” O livro foi publicado em 1856. Flaubert e o editor foram levados aos tribunais. Acusação: imoralidade. O livro seria pornográfico.
Flaubert dizia não escrever com facilidade, sobretudo porque era perfeccionista. “Passei três dias fazendo duas correções. Passei a segunda e a terça-feira inteiras a procurar duas linhas que afinal não encontrei.” A obra mais divertida de Flaubert, “Bouvard e Pécuchet”, ficou incompleta. É deliciosa. Seu “Dicionário de Ideias Feitas” é chute na república da citação, no bacharelismo. É um grande tolicionário. Flaubert morreu aos 59 anos, em 1880.
De Jornal Opção (Brasil), 05/2012
Imagen: Gustave Flaubert
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