TÁRIK DE SOUZA
Morto num domingo
de Carnaval há 50 anos, quando o Império Serrano entrava na avenida com o
enredo Aquarela Brasileira, o compositor Ary Barroso ainda ecoa sua
música pelo planeta. A recém-editada antologia Sonzeira – Brasil Bam
Bam Bam, do DJ e produtor franco-suíço Gilles Peterson, radialista da BBC
londrina, incluiu o megaclássico do autor (creditado como Ary Barossa) Aquarela
do Brasil, em releitura rouca e confidente de Elza Soares. Em lançamento
avulso, no iTunes, a popstar sertaneja Paula Fernandes surfa nos eflúvios da
Copa, num inédito duo póstumo com Frank Sinatra, em Brazil, a
versão em inglês da composição, exportada na era Carmen Miranda da política da
boa vizinhança com os ianques, aliados na Segunda Guerra Mundial.
Forjado no
ufanismo do Estado Novo, esse eufórico samba exaltação desembarcou no bel
canto de Francisco Alves em 1939, sob a opulenta orquestração de
Radamés Gnattali, sincronizada com a ginga da percussão. Ocupava as duas faces
de um single em 78 rotações, algo reservado apenas a óperas e
composições eruditas, e tornou-se a música brasileira mais popular no exterior
até o aparecimento da bossa-novista Garota de Ipanema, cujos
autores, Tom Jobim e Vinicius de Moraes, sempre louvaram os méritos do
antecessor.
Jobim fez uma
regravação épica da Aquarela, de voz e piano elétrico,
no álbum Stone Flower (1970). Vinicius tornou-se parceiro de
Barroso (a quem saúda no Samba da Bênção) em quatro composições,
entre elas Rancho das Namoradas (sucesso posterior com Nara
Leão) e Mulata no Sapateado, relida por Mart’nália em 2002.
Gladiador ortodoxo do samba, Barroso passou pelo crivo vanguardista da bossa.
No primeiro disco, João Gilberto redimensionava os requebros de É Luxo
Só e Morena Boca de Ouro. No tropicalismo, Rogério Duprat
reciclou Rio de Janeiro e Gal Costa prestou-lhe o álbum
tributo Aquarela do Brasil (1980). O pictórico No
Tabuleiro da Baiana reuniu o referido João e seus conterrâneos
Gilberto Gil, Caetano Veloso e Maria Bethânia em faixa do disco Brasil(1981).
Não foi por
acaso. Mineiro de Ubá, Ary Evangelista Barroso antecedeu o local Dorival
Caymmi, ainda em 1931, na entronização mítica do cenário descrito em Bahia (Baiana
tem mandinga/tem feitiço/eu sou da Bahia e mereço um sacrifício). E seguiu
por Nega Baiana, Batuque (Na Bahia Tem), Terra de Iaiá,
Quando Penso na Bahia, Na Baixa do Sapateiro e a hiperbólica Faixa
de Cetim (Bahia, terra de luz e amor/ foi lá onde nasceu/Nosso
Senhor).
Sua produção
caudalosa, vincada de obras-primas, pode ser compulsada na caixa de 20
CDs Brasil Brasileiro, que reúne 316 gravações originais de suas
composições, de 1928 a registros póstumos de 2006, resultado de 12 anos de
trabalho do pesquisador Omar Jubram, o mesmo dos sete volumes do
monumental Noel pela Primeira Vez (2000). Múltiplas faces de
Barroso emergem do roteiro. Pianista e líder de orquestra, escolado na
carpintaria cênica do teatro de revista (Vamos Deixar de Intimidade, Tu Quer
Tomá Meu Home, O Amor Vem Quando a Gente Não Espera, É do Balacobaco), um
dos artífices da trilha sonora da era do rádio (Camisa Amarela, Os Quindins
de Iaiá, Três Lágrimas, Pra Machucar Meu Coração), atuante no cinema e
depois na tevê, perpetrou, segundo a classificação de gêneros impressos nos
rótulos dos discos, 165 sambas, 68 marchas, 18 sambas-canções, 14 canções, 10
valsas e 5 choros, entre outros estilos. Foi colunista e um passional locutor
esportivo, torcedor fanático do Flamengo, capaz de trinar uma gaitinha nos gols
de seu time e omitir os do adversário.
Irritadiço
apresentador do programa Calouros em Desfile, emoldurado pelos
óculos de hastes grossas e o bigodinho triangular, Barroso com frequência
mandava gongar os concorrentes. Na caixa, há uma amostra do programa
transmitido pela Rádio Tupi, do Rio, numa edição de dezembro de 1946, em que um
calouro imita animais e é ironizado por ele. Entre outras curiosidades da
compilação está o jingle de propaganda do Chope em
Garrafa, da cervejaria Brahma, em parceria com o poeta Bastos Tigre,
gravado por Orlando Silva, sucesso no Carnaval de 1935.
Para o
laboratório Fandorine ele criou Despacho, um samba inacabado, a ser
completado pelos ouvintes, num prenúncio da futura interatividade das
comunicações. Vereador pela União Democrática Nacional (UDN), eleito em 1946,
Barroso cerrou fileiras com os 18 integrantes do Partido Comunista, então na legalidade,
liderados por Aparício Torelly, o humorista Barão de Itararé, contra o colega
de bancada Carlos Lacerda, adversário da construção do Estádio do Maracanã, na
Copa de 1950, para a qual endereçou o samba O Brasil Há de Ganhar,
gravado por Linda Batista. Outra faixa traz a marchinha escrita para o
candidato udenista à Presidência, em 1960, Jânio Quadros (Quem é que vai
recuperar esse país?/quem é que vai fazer o povo mais feliz?), cuja letra
soa sarcástica após os desdobramentos nefastos de sua renúncia.
Criador inquieto,
Barroso inicialmente seguiu o cordão dos sambas amaxixados do início do século,
mas logo, no estupendo Faceira, na voz de Silvio Caldas (1931),
introduziu a síncopa batuqueira que o caracterizaria, sem prejuízo de lépidas
marchinhas como a provocadora Dá Nela (com Francisco Alves, em
1930) e a atrevida Eu Dei (Carmen Miranda, 1937). O
compositor fustigou a questão racial brasileira de diversas maneiras. Do humor
insidioso de Boneca de Piche à teatral Cena de Senzala,
a aguda Negra Também É Gente e a áspera Terra Seca (o
nego tá moiado de suó/ trabalha, trabalha, nego!/ as mãos do nego tão que é
calo só), regravada de Jair Rodrigues a Wilson Simonal.
A
desiludida Caco Velho (a vida é essa/é um segundo que se esvai depressa)
acabou nomeando um de seus intérpretes, o gaúcho Mateus Nunes. Lançada em disco
por Carmen Miranda (1934), a parceria com Luis Peixoto Na Batucada da
Vida, da revista musical Há uma Forte Corrente..., ganhou
releitura à flor da pele de uma diva posterior, Elis Regina, exatos 40 anos
depois. O protesto precursor Falta um Zero no Meu Ordenado, com
Francisco Alves, em 1948, foi parar na voz de Jards Macalé, no songbook dedicado
à sua obra, produzido por Almir Chediak, em 1995.
Autor do clássico
samba-canção, em parceria com Lamartine Babo, No Rancho Fundo (regravado
até pela dupla Chitãozinho & Xororó), Barroso indispôs-se com a influência
do bolero caribenho no gênero brasileiro, nos anos 50. Mesmo assim, disparou no
alvo da nova tendência os virais Risque (Aurora Miranda, 1952), Folha
Morta (Dalva de Oliveira, 1953) e Ocultei (Elizeth
Cardoso, 1954). Mordaz até o fim, acamado pela cirrose que o vitimaria, ligou
do hospital para o jornalista e letrista David Nasser, despedindo-se, porque ia
morrer, conta Sérgio Cabral, na biografia No Tempo de Ary Barroso.
“Como sabe?”, perguntou o outro. “Estão tocando minhas músicas no rádio”,
fuzilou.
__
De CARTA CAPITAL, 02/09/2014
No comments:
Post a Comment